domingo, 26 de abril de 2009

"Por que criminalizar a pecuária na Amazônia?"

por João Meirelles Filho*

A maior atividade ilegal da Amazônia é a pecuária bovina extensiva. Não é o tráfico de drogas ilícitas, a biogrilagem, a extração ilegal de madeira ou o garimpo.

Estes movimentam pouco dinheiro e pouca gente se comparados à pecuária. É crime contra os habitantes da Amazônia, pois mais da metade da carne consumida na própria região é abatida, transportada e vendida de forma clandestina, sem condições de higiene, burlando o fisco e a todos nós.

É crime de lesa-humanidade, ao ser o principal fator de emissão de gases que contribuem para as mudanças climáticas globais – carbono e metano, principalmente. Isto envergonha o Brasil perante o mundo, pois o mostra como um país incompetente.

Enquanto as outras nações se preocupam com o clima, o Brasil faz da Amazônia uma grande e desavergonhada fogueira. Em 30 anos, nós, os brasileiros, desmatamos 70 milhões de hectares na Amazônia, uma área maior que Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo juntos.

Pior, anualmente queimamos boa parte desta área, mesmo sendo proibido, porque é mais fácil e mais barato limpar o pasto por meio do fogo e, como ninguém fiscaliza mesmo...
É crime contra o fisco estadual e federal, ao esconder mais de 5 milhões de cabeças de gado pastando sossegadamente nos grotões das fazendas. Gado que é transportado e abatido clandestinamente e vai financiar a grilagem de mais terras e a retirada de mais madeira ilegal.
É crime ambiental, ao não respeitar sequer o Código Florestal, esse instrumento legal da década de 1960, uma vez que não há uma única fazenda de pecuária extensiva na Amazônia que possa ser considerada legal. As áreas de proteção permanente (APPs) são ignoradas e as reservas legais são raramente cumpridas. As microbacias são pisoteadas e interrompidas, as margens dos cursos d’água não são respeitadas, as queimadas são mais comuns do que se imagina, a caça prossegue até o extermínio, os habitats críticos são desconsiderados, assim como a complexa biodiversidade e as espécies ameaçadas.

Enfim, o ambiente nativo é um inimigo a ser extinto e substituído pelo capim exótico.
O boi, outra espécie exótica e invasora, ocupa o espaço que deveria ser dos ambientes e da fauna naturais. É crime trabalhista, ao empregar, informalmente, sem condições mínimas de trabalho – moradia para o trabalhador e sua família, transporte, local para refeições, equipamentos de segurança –, a maior parte dos 500 mil trabalhadores do setor. A maioria de trabalhadores libertados em regime análogo à escravidão o foram de fazendas de pecuária da Amazônia.

É crime fundiário, ao invadir 50 milhões de hectares de terras públicas (duas vezes a área do Estado de São Paulo) e procurar, por meios espúrios, legalizar a propriedade dessa terra, com grandes vantagens ao proprietário e imensas perdas à União e a cada brasileiro. Essa usurpação hoje é matéria de escândalo nacional – a Medida Provisória (um instrumento da ditadura) de número 458, que legaliza a posse dos grileiros que ocupam terras de 400 a 1.500 hectares.

É crime de lambança econômica, ao ignorar o maravilhoso potencial econômico dos ambientes naturais e preferir, em seu lugar, produzir ridículos 85 kg anuais de carne bovina por hectare e alcançar a desprezível renda anual de R$ 300 por hectare. Afinal, esses grileiros não pagaram pela terra e roubam-nos a madeira. Por que se sensibilizariam para a regra número 1 da economia privada: o retorno sobre o capital?

A pecuária brasileira é a altamente ineficiente e, com raras exceções, demonstra capacidade em avançar. Porque insistir na pecuária? Na Amazônia a pecuária apresenta um grau de ocupação inferior a uma unidade animal por hectare e oferece retorno sobre o capital inferior ao da caderneta de poupança (6% ao ano). Ou seja, o pecuarista ganharia mais dinheiro colocando seu capital em qualquer aplicação financeira que devastando a Amazônia. Mesmo economicamente, a atividade da pecuária da Amazônia não se justifica – seu impacto na economia brasileira é desprezível: menos de 0,5% do PIB do Brasil. Por que, então, insistir nessa atividade?

É crime social e cultural, ao perpetuar o atraso deste país. Um país ocupado pela ditadura da pata do boi e de seus coronéis é o símbolo do atraso, do desrespeito à cultura e aos direitos básicos dos cidadãos.

É crime ao ser a principal causa de mortes e violência no campo, atingindo especialmente as populações tradicionais. A pecuária torna o Brasil um campo de concentração, protegido por capangas ilegais, que alimenta a corrupção política e a lavagem de dinheiro que tanta energia e recursos sorve da nação.

A pecuária trata a Amazônia no atacado. Aceita-se passivamente a transformação anual de 1 milhão de hectares de florestas em pastos e a devassa anual de 100 mil hectares para o carvão vegetal ilegal e tantas áreas para a soja e outras atividades. Diante da pecuária, um conhecimento de 10 mil anos – a cultura da floresta tropical – não tem valor. O indivíduo, especialmente o das populações originais, nada representa, é um estorvo.

O que vale são os milhares de hectares de pastos sujos e malcuidados, desertos humanos, tendo como moldura o paliteiro de castanheiras e árvores queimadas, de braços abertos, a pedir socorro. Se os conhecimentos atuais da agrofloresta (comprovados pelo Instituto de Permacultura da Amazônia) e da aquicultura (vide Embrapa e outros) permitem a uma família viver dignamente com 1 hectare de agrofloresta e aqüicultura, por que insistir nas dinossáuricas fazendas de boi de 500, 1.000, 5.000 e 50.000 hectares?

O que queremos para a Amazônia? Como explicar a nossos filhos (e a nós mesmos) que, na Amazônia, passamos de um rebanho de menos de 2 milhões de cabeças, em 1964, antes do golpe militar, para uma boiada de 75 milhões de cabeças, mais do que em toda Europa, e equivalente a um terço do gado do Brasil? Como será a Amazônia daqui a dez anos, com o aumento de 5 milhões de cabeças de gado por ano? Como explicar que quem precisa de dinheiro para comprar boi e limpar pasto tem crédito fácil? Ou melhor, como explicar os R$ 6,7 bilhões emprestados pelo BNDES, o Banco da Amazônia e outros lautos cofres da nação dos brasileiros aos grandes grupos frigoríficos, em boa parte para emprego na Amazônia? Isso significa que cada um de nós, brasileiros, estamos doando aos frigoríficos R$ 33,50. Diante disso, doações de países como a Noruega para o Fundo Amazônia parecem ações do jogo infantil banco imobiliário.

Ao mesmo tempo, porque é tão difícil o acesso a crédito para as atividades sustentáveis, de reflorestamento, as florestas de alimento, a aquicultura, especialmente ao milhão de famílias de pequenos agricultores da Amazônia, entre as quais estariam as populações tradicionais, atualmente com menos direitos que o boi que pisa a Amazônia?

Como explicar o desinteresse do poder público, em suas diversas esferas, por discutir a verdadeira causa de destruição da Amazônia: o aumento desenfreado do consumo de carne bovina e o deslocamento de sua produção para a Amazônia?
Haverá tantos pecuaristas no Congresso Nacional e no Executivo e no Judiciário para fechar a porteira dessa discussão?

Não seria o momento de declarar uma moratória na concessão de crédito para a pecuária e nas licenças para frigoríficos na conversão de florestas e ambientes naturais em pasto para mais boi? Pelo menos até que a Constituição Federal, que considera a Amazônia patrimônio nacional, fosse efetivamente cumprida? O que queremos nós, brasileiros?
Mais duzentas gramas de bife ilegal e pretensamente barato (pois não pagam as externalidades sociais e ambientais) em nossos pratos ou a Amazônia conservada e suas populações respeitadas? As recentes pesquisas do DataFolha e do Amigos da Terra não deixam dúvidas quanto à opção do brasileiro pela Amazônia integral. Da mesma forma, os estudos do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), do Instituto Socioambiental (ISA), do Greenpeace e de outras organizações, e o espaço aberto pela mídia, como a Rede Globo, denotam a gravidade e a urgência da questão amazônica. O discurso que até agora se qualificava de conversa para boi dormir (para diminuir sua força), de “ambientalista”, de “verde”, hoje é preocupação central do brasileiro.

O país precisa decidir hoje se quer ser o curral do mundo, onde pastarão os bois do planeta, ou se quer a Floresta Amazônica e seus habitantes. Na verdade, os brasileiros precisam decidir se querem continuar sob o cabresto e no curral dos pecuaristas ou se querem assumir plenamente a sua cidadania e exercer seus direitos.

O Congresso Nacional, ao propor uma lei que considere crime a pecuária bovina extensiva na Amazônia, despertará um ciclo virtuoso de inovação científica e tecnológica e de geração de emprego e renda sem precedentes nos 400 anos de maus-tratos e desprezo à Amazônia. Com os conhecimentos atuais, é possível, em dez anos, retirar o boi da Amazônia, substituir os seus 70 milhões de hectares por 10 milhões de hectares de agrofloresta, dobrar a área de florestas energéticas do Brasil, com o plantio de 6 milhões de hectares, além de 100 mil lagos de aquicultura cabocla (para obter a proteína animal que o mercado deseja), gerar 5 milhões de empregos e, de quebra, recuperar pelo menos outros 20 milhões de hectares para cumprir a legislação, tornando-os áreas de proteção permanente e reservas legais.

Trata-se, sem dúvida, no país que ama os superlativos, do maior programa de restauração ambiental e reflorestamento jamais pensado para o planeta.
O consumidor não precisa esperar que o Congresso desperte. Pode, agora mesmo, exigir os seus direitos, seja pelo voto, seja na gôndola do supermercado. Por que não perguntar ao seu fornecedor de onde vem a carne que lhe é oferecida? Não é este um direito básico do consumidor? Por que continuar a comprar carne de quem não lhe dá essa informação? As três grandes redes varejistas – Pão de Açúcar, Wal-Mart e Carrefour – se candidatariam ao Premio Nobel da Paz ao assumirem o compromisso de que, a partir de hoje, não adquiririam um só quilo de carne da Amazônia e respeitariam o consumidor, ao informar exatamente de onde vem a carne à venda.

É preciso desarmar essa bomba-relógio Em alguns dias, as chuvas amainarão e as motosserras urrarão na calada da noite, engolindo, este ano, mais 1 milhão de hectares de florestas. As festas juninas trarão a pirotecnia nacional e a queima de mais de 25 milhões de hectares de pastos sujos. E o fogo entrará silenciosamente, na floresta (uma área maior que a do Estado de São Paulo). Se a pecuária bovina é o carrapato que suga o Brasil e nos faz adoecer, porque insistimos no boi como símbolo de riqueza e motor do progresso?

Por que escolhemos o pior conversor de energia, que precisa comer 8 kg de alimento para transformar em 1 kg de carne? Com todos os avanços tecnológicos não haveria algo mais inteligente a fazer? Se a pecuária é a droga que entorpece o país, não seria o momento de transformar o BNDES no Banco Nacional de Substituição da Pecuária, para desarmar essa bomba-relógio que nos levará à bancarrota econômica e ao colapso social e ambiental?

E por que não criar as Escolas Nacionais de Reciclagem de Pecuaristas?
Elas colocariam em prática o conhecimento disponível dos povos originais, da academia, dos centros técnicos, das ONGs e das empresas modernas, pelos quais a Amazônia se apresenta como jardim de oportunidades, a floresta de alimentos, espaço para o ecoturismo e para a retenção de carbono (com mecanismos como o do desmatamento evitado – REDD) e onde as terras indígenas, quilombolas e unidades de conservação sejam respeitadas e sejam sustentáveis.

Afinal, quem somos nós? O gado tocado pelos pecuaristas ou os cidadãos que se respeitam, respeitam esta nação e estão comprometidos com a sobrevivência da humanidade no único planeta de que dispomos?

* João Meirelles Filho é autor do Livro de Ouro da Amazônia, descendente de incontáveis gerações de pecuaristas, e trabalha no Instituto Peabiru, pela substituição da pecuária bovina por atividades dignas e sustentáveis.